
A Alfabetização Descomplicada iniciou seus atendimentos em março de 2024 com o objetivo de acolher e alfabetizar crianças que enfrentavam dificuldades para aprender a ler e escrever. Tivemos a felicidade de atender 30 alunos ao longo do ano e participar deste processo transformador que a leitura e escrita desempenhou em suas vidas e na de suas famílias.
Nossa fundadora, a professora e psicopedagoga Rosane Gonçalves, conta que a inspiração para a criação do projeto, com uma metodologia leve de ensino, foi a sua própria alfabetização:
(…) porque foi assim que eu fui alfabetizada e foi assim que todos os anos de trabalho me mostraram: que tem um melhor resultado, que tem um melhor funcionamento. Quando a alfabetização é feita de uma maneira livre, é como se a criança estivesse brincando, como se a criança estivesse participando de um jogo, de um filme, de alguma coisa assim, que ela nem sente uma obrigatoriedade de aprender.
Neste texto, queremos compartilhar um pouco da nossa satisfação por ter participado da alfabetização de tantas crianças maravilhosas, e comentar algumas experiências que passamos para evidenciar o poder transformador da alfabetização infantil.
Edson Miranda

A primeira criança atendida na Alfabetização Descomplicada foi o Edson Miranda (11 anos). Suas dificuldades de aprendizado eram motivo de muita preocupação para sua família. Seu pai, Hamin Miranda, nos contou que sempre procurou meios para ajudar o filho a se desenvolver, mas chegou a ficar sem saber o que fazer, pois tudo o que tentava parecia não funcionar.
Até que um dia, navegando na internet, a avó do Edson descobriu a Alfabetização Descomplicada – tínhamos abacado de inaugurar – e nos apresentou para sua família, que decidiram, então, apostar na nossa proposta e nos confiar a alfabetização do seu filho.
Para nossa surpresa, o Edson já chegou sabendo escrever – e em letra cursiva ainda!
O Edson já tinha uma escrita, mas ele não sabia ler. Era uma escrita de cópia; ele sabia copiar, mas não tinha clareza do som das letras e o que se faz para descobrir a leitura.
Então, como ele tinha chegado para as aulas já contendo muita informação, não foi preciso começar a alfabetização do zero; aproveitamos aquilo que ele já sabia e o apresentamos às informações que ele ainda não sabia.
O processo dele foi muito rápido, porque é como se ele já tivesse pronto – mas essa parte (a da leitura) não tivesse sendo trabalhada. Então ele ficava travado nisso: na falta de leitura, na falta do entendimento do que se tem que fazer para conseguir ler.
Quando uma criança apresenta dificuldade para aprender a ler e escrever, é comum que os adultos pensem que aquela criança tenha dificuldade para aprender qualquer coisa – o que não é, necessariamente, verdade. O Edson, por exemplo, chegou sem saber ler, mas descobrimos que ele tinha um conhecimento muito aprofundado para alguns assuntos.
As crianças são inteligentes. Cada uma tem um tipo e uma característica dessa inteligência; e o Edson é muito perspicaz, ele tem um conhecimento muito vasto sobre as coisas do mundo, ele sabia o que era “moinho”. As crianças, quando chegam lá (na Alfabetização Descomplicada) e eu apresento o que é um “moinho”, elas não sabem o que é, elas nunca viram. Mas o Edson, não só sabia o que era, como sabia como funcionava e para o quê servia.
Resgatar a autoestima do Edson foi parte fundamental de seu processo de alfabetização. Para que ele conseguisse aprender, foi preciso fazê-lo acreditar que era capaz de aprender.
Eu comecei a dizer para ele o quanto ele era inteligente, o quanto ele era capaz; e o quanto que ler era fácil. Então eu crio uma distância – eu ponho ele “grande” e leitura “bem pequenininha” (…) Então ele começa a acreditar que vai dar conta.
E esse é o primeiro trabalho que eu faço com as crianças porque todas elas chegam muito desacreditadas lá na Alfabetização Descomplicada; e a partir daí, a criança começa a arriscar, ela começa a não ter medo de não fazer um som certo, ela não tem medo da palavra ser diferente do que ela está lendo; e isso cria um contexto muito favorável para a alfabetização. E tudo isso foi feito com o Edson; cada vez ele acreditava mais, e, cada vez, lia mais.

Edson concluiu a Alfabetização Descomplicada com sucesso e, agora, ele lê e escreve tudo!
José Eduardo

O José Eduardo (5 anos) chegou feito uma folha em branco: com pouquíssimas informações sobre leitura e escrita. Mas isso não foi nada negativo; muito pelo contrário, foi uma oportunidade de introduzi-lo ao universo das letras utilizando nosso método em sua forma original.
Sua mãe, Klitya Juliane, nos contou que o interesse em ler e escrever veio do próprio filho: ele tinha uma amiga que já sabia e, inspirado por ela, quis aprender também.
Quando ele chegou, ele não escrevia com letras – era pré-silábico (…) Mas ele é um menino muito livre, ele não chegou com essa questão de autoestima baixa, ele chegou pronto “pro que der e vier”.
O desenvolvimento do José Eduardo foi muito fácil desde seu primeiro contato com as letras.
Muito rapidamente ele entendeu o som de todas as letras; e ele arriscava; toda letra que ele olhava ele perguntava pra mim qual era o som, se tava fazendo certo; muito motivado, muito disposto.
E quando ele chegou no nível alfabético, que ele já tinha construído todos os referenciais das letras, ele começou a ler; e foi muito lindo. Ele riu muito no dia que ele leu a primeira palavra, que foi a palavra “arara”. Coincidentemente, eu tava filmando.
A partir deste dia, o José Eduardo poderia concluir suas aulas na Alfabetização Descomplicada e seguir apenas em sua escola regular, mas ele decidiu que queria continuar porque, agora que já sabia ler, queria aprender a “ler rápido”.
Atualmente, José Eduardo está afastado das aulas devido a uma cirurgia, mas continua sendo incentivado a ler em casa. Klitya nos disse que passou uma tarefa semanal para ele: ler um dos livros que ela escolhe para, no fim de semana, comentá-lo com ela.
Além disso, a alfabetização do José Eduardo também chamou atenção das professoras de sua escola regular, que até o convidaram para ser o orador da turma na formatura. Elas só não contavam que ele, apenas dois dias após receber o texto, já o teria decorado por inteiro.
Perguntamos para ele “o que foi que ele mais gostou de aprender este ano”. Sua resposta não poderia ser melhor:

Que fique registrado que estamos todos com muita saudade dele e que torcemos pela sua rápida recuperação! Força, José Eduardo!
Lis

Quando a Lis (6 anos) chegou, notamos que enfrentava desafios não apenas na leitura e na escrita, mas também no controle de seu próprio corpo.
Quando a Lis chegou, ela deixava o lápis cair umas 12, 15 vezes, naquele movimento de se sacudir, de balançar o lápis, de balançar as pernas, de levantar, de bocejar…
Por ser uma garota muito animada, cheia de energia e que adora brincar, sua euforia interferia em sua concentração, o que gerou grande preocupação por parte de suas professoras. Seu pai, Silder Andrade, nos contou que fora recomendado, pela escola, a procurar ajuda especializada para investigar se ela possuía algum tipo de transtorno, mas nada fora detectado. O desafio era, então, fazê-la se acalmar para, assim, fazê-la ler e escrever.
Se a criança fica se sacudindo, balançando as pernas, dando tapas nos joelhos, olhando para um lado e para o outro, eu digo para as minhas crianças que a atenção fica dividida entre esses movimentos e a atenção na escrita.
E eu uso uma técnica – eu mesma que inventei; eu combino com a criança que quando eu colocar, por exemplo, a mão no joelho dela, ela tem que parar de balançar porque, naquele momento, ela tá dividindo a atenção do cérebro entre o balanço das pernas com a atenção na escrita. E isso funciona muito bem! A criança para e atenção dela vem toda para mim.
Quando eu comecei a fazer esse trabalho com ela, ela foi acalmando, ela foi controlando o corpo… e teve um dia que ela mesma falou para mim: “Eu não tô mais deixando o lápis cair”. Ela mesma percebeu que algo tinha mudado no comportamento dela.
Isso revela o quanto a criança é vulnerável a fatores que ela mesma não compreende. Por isso, é importante observar a criança e entender o seu contexto para, assim, pensar em estratégias específicas capazes de ajudá-la a se desenvolver. No caso da Lis, o desenvolvimento de sua educação dependia, primeiramente, do desenvolvimento de sua autopercepção.
E hoje, a Lis não tá no processo de leitura ainda, porque ela resiste em fazer, ela mesma, o som (das letras). Ela tem uma insegurança quando a pronúncia é dela. Então ela, nesse momento, está dependente da minha pronúncia; e o trabalho que eu estou fazendo com ela, agora, que ela pode escutar o som que sai da boca dela e não, somente, da minha.
Ou seja, resolvido a primeira questão, agora o trabalho necessário para alfabetizar Lis se tornou outro.
Então eu tenho que trabalhar a segurança dela para ela vencer essa barreira, para ela mesmo pronunciar e “fazer o cérebro escutar”. Eu sempre digo para a criança: “O cérebro tem que escutar o som que você está falando”.
Atualmente, também podemos perceber o avanço de Lis na alfabetização por meio de seus desenhos. É comum que as crianças comecem a desenhar antes de aprenderem a ler, e com ela não foi diferente. Contudo, sua agitação a impedia de produzir desenhos caprichados.
Antes, as figuras humanas que ela desenhava não tinham rosto, e ela não coloria seus desenhos. Agora, além de ter mais autocontrole e ter avançado no processo de alfabetização, Lis produz desenhos mais detalhados e coloridos – ela até fica perguntando “quando é vai ter atividade de desenhar”.

Toda criança está envolta num contexto, e ao descobrir o que atrapalha a criança, naquele contexto em que ela está, torna-se fácil eu tirar este obstáculo para a criança fluir na leitura e na escrita.
Se a gente pensar num rio – é uma ótima metáfora… O rio tem pedras. O que a água faz pra passar pela pedra? Ela desvia, se a pedra for grande, ou ela passa por cima, se a pedra for pequena e a força da água for maior, certo? Com a criança, em relação à alfabetização, é a mesma coisa.
Então eu necessito descobrir qual é esse contexto, o quê que cada criança tem, o que, no contexto dela, está atrapalhando a alfabetização; e diante disso, eu retiro aquela pedra e a água flui, ou eu faço a água ter mais força que o obstáculo. E aí a criança aprende.

Valentina

Valentina começou as aulas há pouco tempo, mas nosso primeiro contato foi motivo de muita emoção pois descobrimos que o seu sonho era aprender a ler. Sua mãe, Givanilde, nos contou que, em casa, Valentina sentava no chão para folhear os livrinhos e tentava lê-los sozinha. Como não conseguia, pedia ajuda.
Mas, em sua primeira visita à Alfabetização Descomplicada, onde ela veio para a Professora Rosane avaliar seu nível de leitura e escrita, a Valentina ficou tão quietinha que sequer pronunciou uma única palavra.
Não teve nem como eu saber quais eram as dificuldades de fala. Mas eu sou uma pessoa que, independente da criança me responder ou não, eu faço toda a minha estratégia:
Eu conversei com ela, eu falei que ela era linda, quando ela escrevia eu falava “Nossa, eu pensei que eu ia te ensinar a escrever, só que você já sabe! Então, o que você veio fazer aqui, Valentina?”.
Apesar de a Valentina ter se mantido calada durante o dia da avaliação, a Professora Rosane conseguiu identificar que ela estava no nível alfabético, ou seja, já possuía todas as informações necessárias para poder ler, mas, por algum motivo, não conseguia (que nem o Edson). Então era necessário continuar os trabalhos de alfabetização para investigar as causas disso.
Os pais me alertaram que, provavelmente, ou ela ia demorar muito para falar comigo, ou ela nunca iria falar… Mas, no primeiro dia de aula, ela chegou toda serelepe, bem animadinha – isso já de meu uma tranquilizada.
Quando eu fiz a primeira pergunta, ela já me deu uma resposta, e eu fiquei muito surpresa – só que não fiz nenhum alarde. Eu continuei fazendo outras perguntas e ela continuou me dando outras respostas, dialogando comigo (…) E aí eu pensei: “Na próxima aula, nós vamos ler”.
Já em seu segundo dia de aula, Valentina conseguiu ler suas primeiras palavras.
Mas eu tive que elaborar uma estratégia para saber se ela estava compreendendo aquela palavra que ela estava lendo, se estava interpretando.
Então, se ela lia a palavra “arara”, por exemplo, eu perguntava: “Isso aqui é nome de pessoa ou é nome de animal?”; ela falava “É animal”. “Esse animal voa ou rasteja?”; aí ela falava “voa”.
Então eu ia concluindo que ela realmente entendeu que animal era aquele.
Valentina segue com a gente e está desenvolvendo uma caligrafia linda, trabalhando o entendimento de frases, e se ela diz que não sabe o que quer dizer determinada palavra, é porque ela ainda não conhece aquela palavra, porque “ler” ela já consegue ler tudo.
Sobre 2024
Este foi um ano repleto de desafios mas também de muitas surpresas e tudo o que aconteceu serviu para tonar a Alfabetização Descomplicada um espaço acolhedor, compreensível, que valoriza a criança além das suas dificuldades, que incentiva o seu aprendizado e promove o desenvolvimento de suas capacidades.
Em uma sala de aula típica, a maioria das crianças entre seis e sete anos de idade conseguem desenvolver essas habilidades ao frequentar as aulas. No entanto, algumas enfrentam obstáculos que dificultam esse aprendizado, e os motivos podem variar amplamente: condições neurológicas, comportamentais ou biológicas; problemas de concentração; ausência de estímulos adequados; ou, simplesmente, o fato de não terem se adaptado à forma como o conteúdo foi ensinado.
Apesar dos pesares, essas crianças têm o mesmo direito de aprender a ler e escrever que qualquer outra, mas, para isso, torna-se necessário uma intervenção adicional capaz de atender às suas necessidades específicas e possibilitar seu pleno desenvolvimento.
A alfabetização representa muito mais do que aprender a ler e escrever. Para a criança, é como se uma porta se abrisse dando acesso à um novo mundo de possibilidades, uma luz que ilumina o mundo ao seu redor e permite que ela participe ativamente dele, se expressando, interagindo e tornando-se um pouco menos dependente de seus cuidadores.
Em 2025, continuaremos trilhando este fabuloso caminho do conhecimento. Aqui não há limites para aprender.